CARTA ABERTA AO TRÂNSITO BRASILEIRO


 

Encerramento da Semana Nacional do Trânsito de 2020

 

 

De quanto é o valor existente no FUNSET, atualmente?

Qual foi a receita da arrecadação de multas no Brasil, nos últimos cinco anos?

O Brasil gastou mais de 100 bilhões de reais, em acidentes de trânsito, no ano de 2019.

A ONU estabeleceu metas de redução de mortalidade no trânsito, em períodos de 10 em 10 anos. Quanto o Brasil gastou na década de 2011/2020, para atingir a redução anunciada, nos percentuais de 30%?

Trabalhamos incessantemente para consolidar um modelo de estrutura operacional de trânsito, que nos permita compilar as informações oriundas dele, de maneira ampla, numa cobertura quase que em tempo real. Esse é o propósito maior dessa grande estrutura para tentar compreender o que acontece com o nosso modo de transitar, para intervir nesse modo, no menor tempo, e com a maior precisão possível.

Entretanto, o crescimento contínuo desse organismo estrutural, em todos os seus aspectos, não assegura eficácia e não atesta a sua validade e importância.

Os tempos modernos demonstram isso a todo instante, de maneira economicamente mais adequada e ajustada aos custos que envolvem uma estrutura da qual se deseje obter resultados sociais favoravelmente indiscutíveis.

Antes de utilizarmos os recursos tecnológicos que possuímos hoje, os recursos humanos eram os coletores dessas informações, o que justificava a limitação, a demora, e toda a incompletude dos dados.

As ferramentas que utilizamos hoje, já nos garantem fidedignidade, precisão e velocidade para contribuir com a análise e a elaboração do planejamento necessário para intervir, estancar e eliminar os problemas detectados.

Também temos um organograma da esfera federal, passando pela estadual e municipal, prontamente desenhado, ainda que operacionalmente incompleto e obstruído, o que não nos impede de compreender a realidade em que vivemos, e não encerra nossa compreensão do que ocorre conosco.

Na verdade, a compreensão dessa realidade é a etapa mais obvia e transparente. O que ocorre, na verdade, é uma insistente postura de postergá-la e uma excessiva atitude burocrática para lidar com ela.

O modelo de gestão, adotado nas instâncias públicas brasileiras, historicamente carrega consigo uma morosidade que insiste em permanecer obsessivamente resistente, mesmo com todas as ofertas tecnológicas ao dispor. E talvez esteja chegando o fim desse ciclo danoso para os interesses da nossa sociedade, na medida em que esses recursos modernos possam reduzir e substituir significativamente o elemento humano dessa engrenagem, com mais qualidade, agilidade e precisão.

Voltando ao ponto em que estamos tratando da questão da compreensão de nossa realidade no trânsito, toda ela é de conhecimento e de domínio público, ao contrário do que se possa imaginar. Não existe, em nenhum lugar desse país, um problema de trânsito que não seja do conhecimento, da análise e da compreensão de sua população local, e por conseguinte, de todos.

Possuímos uma legião de brasileiros que convivem rotineiramente com todos as mazelas do nosso trânsito. Diariamente, essa legião presencia os acidentes de trânsito e sabe compreender perfeitamente as causas e as consequências de suas reincidências. E como se não bastasse, ainda reúne condições de apresentar as suas soluções, que muitas das vezes são aquelas perfeitamente corretas e necessárias.

E para tanto, dentro do aparato da estrutura operacional de trânsito existente, os trâmites dessas causas e consequências, muitas vezes se perdem no emaranhado burocrático das intermináveis análises e providências que muitas das vezes, sequer são compreendidas e mais ainda, solucionadas.

Toda a comunidade do trânsito tem a capacidade de interpretar e opinar a respeito dos problemas locais, regionais e nacionais do trânsito, porque ela está envolvida diretamente com o dia a dia dos acidentes, dos riscos e da ausência de providências.

Essa comunidade amadureceu, passou a direcionar sua atenção para essa realidade ameaçadora. Organizou-se em várias frentes de combate a esse drama que vive continuamente. Tomou por iniciativa própria, a frente em campanhas, em ações de conscientização, formou associações, federações, grupos no Whatsapp, no Facebook e noutras redes sociais, invadiu as ruas e avenidas de suas cidades para expressar suas reivindicações, agindo incansavelmente para intervir e mudar, na medida em que percebeu a ausência do poder público e suas deficiências operacionais.

Existe uma grande movimentação de iniciativa popular, da sociedade organizada, de pessoas que voluntariamente dedicam parte do seu tempo para acolher as demandas do trânsito, que desembolsam seu próprio dinheiro para custear as causas que julgam necessárias e importantes para a sociedade.

Prestadores de serviços, profissionais do trânsito, educadores, estudiosos, e outros importantes atores da sociedade, dedicam suas causas ao trânsito brasileiro, e se oferecem ao dispor para uma ação que possa contribuir para mudar essa fatídica realidade.

Cada um tem que fazer a sua parte. E cada parte tem que usar de toda a sua capacidade para operar, intervir e conquistar resultados definitivos. E não pode mais ser para depois.

Portanto, não carecemos de informação para compreender nossa realidade. Ela salta aos nossos olhos, teimosa e cruelmente.

Sabemos da importância da oficialização, do registro, da coleta científica, da necessidade da análise, da estatística, dos olhares técnicos e políticos da informação sobre trânsito e não desconsideramos sua validade e utilização.

Talvez um exemplo possa servir para a melhor compreensão desse modelo operacional praticado hoje, no trato do nosso trânsito:

Num certo trecho de uma BR, localizada numa cidade de um estado do nosso Brasil, ocorriam acidentes de colisão frontal, vitimando pessoas. Esses acidentes eram frequentes, e ninguém sabia explicá-los e entendê-los pois suas vítimas não sobreviviam para poder esclarecê-los. A polícia rodoviária fazia suas avaliações, os engenheiros faziam o estudo da logística, da malha asfáltica, da velocidade imprimida naquele local, e tudo era coletado e reunido para análise científica e demais estudos, tramitando no organismo operacional vigente.

Meses se passavam, acumulando mais mortes, mais danos materiais e nenhuma solução era encontrada para eliminar aquele quadro. Os relatórios expedidos a respeito daquelas ocorrências, recomendavam radares no trecho, quebra-molas, campanhas educativas, blitz periódicas, considerando que os condutores abusavam da velocidade, dormiam no volante ou não tinham educação para o trânsito.

Certo dia, um morador da proximidade presenciou a travessia de um burro pela BR, na direção oposta da pista, que marchava para um farto e vistoso capinzal que o atraia. Naquele dia, mais um acidente fatal ocorria no exato instante em que o animal atravessava a pista.

O registro desses acidentes, tinham como causa, a travessia daquele burro, que inadvertidamente era solto nas imediações da rodovia, por seu dono, que por lá o deixava até que pastasse e retornasse para a sua propriedade.

E a medida que teria que ser tomada, para que nenhum daqueles acidentes tivessem ocorrido, seria a simples utilização de uma corda.

O morador da proximidade presenciou aquela ocorrência e procurou as autoridades para informar o que tinha visto. O prefeito disse que a rodovia era Federal e que não tinha como intervir. O Governador entrou com uma licitação para as obras de reparo e prevenção, e foi a Brasília, requerer os recursos.

O dono do burro fugiu, o animal foi doado a uma instituição de cuidados com animais. Ninguém mais perdeu a vida naquele trecho.

Um ano depois, começaram as obras de instalação de radares e quebra-molas, naquele local.

Essa é uma história fictícia, criada para espelhar o cenário brasileiro do trânsito.

Os municípios sabem de seus problemas no trânsito, os estados sabem de seus problemas no trânsito. Em cada local, as pessoas sabem dos problemas de trânsito existentes.

E todos sabem qual é a melhor solução para eles!

Numa situação casual, em que somos observadores de um fato, presenciando a sua natureza, o seu cotidiano, as causas e consequências das ocorrências que ali acontecem, compreendendo a razão que as interliga, nos tornamos capazes de apresentar as soluções para os problemas que ali se manifestam.

A criação do PNATRANS, e sua recente implantação, marca um passo importante no enfrentamento definitivo para a eliminação imediata dos principais problemas que o país apresenta no trânsito. E esses principais problemas representam o percentual maior, no objetivo de eliminar o número de mortes que o nosso trânsito provoca.

O propósito que demarca uma característica fundamental do PNATRANS é a postura determinada, focada na redução imediata do histórico de acidentes de trânsito no Brasil.

Seguindo a referência do Plano Sueco, com o VISION 0, não devemos nos esquecer de seguir o princípio básico que norteia esse projeto, qual seja, a de adotar MEDIDAS SIMPLES, para o alcance dos resultados.

Essa característica apregoa uma mudança de postura, de mobilização e intervenção eficaz, se libertando do engessamento e da morosidade do modelo de gestão atual, que não perde sua importância e validade, mas que não consegue operar ativa e produtivamente, em tempo hábil e eficaz.

Numa relação estatística de mortes, acidentados com lesões permanentes, acidentados sem lesões permanentes e outros acidentados, a prioridade não poderia deixar de obedecer às de maior consequência ao indivíduo acidentado.

E numa relação paralela, na medida de uma intervenção direta e definitiva nas causas de maiores consequências, as demais tenderiam a diminuir, por consequência.

Acreditamos que o Brasil possa colher resultados expressivos e definitivos, num espaço de tempo menor do que o proposto pela ONU, de uma década de ações. Na verdade, a ONU estabelece esse referencial, numa convocação e numa provocação proposital para que os países se mexam mais rapidamente no combate aos acidentes fatais, mas uma tomada de decisões que ainda não tomamos, apesar de já sabermos o que tem que ser feito, apresentaria resultados favoravelmente transformadores, num espaço de tempo menor do que de uma década.

Senão vejamos. Se nossos municípios e nossos estados conhecem cada qual, claramente os problemas de trânsito que acidentam e vitimam pessoas em seus territórios, não haveria nenhuma dificuldade para identificar o problema de trânsito que mais vitima em suas divisas! Na verdade, cada estado já sabe que problema é esse!

Os estados já têm capacidade para apontar quantitativamente e qualitativamente onde, como e porque os acidentes acontecem em seus territórios!

E sendo assim, seguindo a relação estatística da prioridade e do foco, cada estado sabe dizer onde mais se morre, e onde mais se acidenta em suas vias de trânsito.

Se vislumbramos uma ação de eliminação zero de acidentes fatais de trânsito no Brasil, temos que iniciar nossas ações onde mais se morre e onde mais se acidentam os cidadãos brasileiros!

Nossos esforços têm que convergir para essas prioridades! Sejam eles educativos, fazendo cumprir as diretrizes pautadas no CTB, sejam eles logísticos com suas obras viárias, sejam eles políticos e administrativos!

A elaboração de um plano de ação direta nos acidentes de trânsito no Brasil, têm que obedecer a essa lógica!

Cada estado da federação tem que apresentar o problema que mais vitima e acidenta no trânsito, em seu território. Na reunião de todos os estados, elaboraríamos um plano prioritário e nacional para intervenção imediata, convocando todos os colaboradores, todos os atores públicos e privados, num esforço e numa ação conjunta e definitiva para a solução dos problemas centrais que mais vitimam pessoas no trânsito brasileiro!

Os problemas de menor prioridade, e não menos importantes, continuariam a ser tratados com as dinâmicas de intervenção, mas não retardariam as ações principais, que sendo eliminadas, naturalmente provocariam um impacto positivo nos demais problemas, facilitando significativamente suas abordagens.

Essa seria a maneira mais apropriada para diminuir rapidamente os acidentes fatais, atendendo a uma convocação da ONU, e mais do que isso, capacitando nosso modelo de gestão para uma dinâmica operacional verdadeiramente interventora.

Acredito que a meta dos 10 anos tenha que existir para sempre. Mas isso não significa que tenhamos que projetar nossos resultados utilizando todo esse tempo.

Aliás, sou mais otimista, e acredito que já na metade de uma década, estaríamos eliminando mais de 50% de mortes fatais no nosso país.

Já colhemos resultados muito importantes para a nossa sociedade. O uso consciente do cinto de segurança é uma conquista que nos orgulha muito. O combate ao tabagismo também representa uma aquisição de qualidade de vida em comum, que serve de exemplo para muitos países ditos desenvolvidos.

O trabalho de conscientização do uso da cadeirinha para transporte de crianças é outro resultado que rapidamente estamos colhendo.

Somos capazes de realizar grandes feitos, de tomar medidas inteligentes de impacto social favorável à nossa vida em comum.

E o gesto que permitiu essas mudanças foi a postura de decisão, de foco e prioridade, que sabemos utilizar quando decidimos em conjunto.

A corda que poderia ter salvado muitas vidas, na história fictícia que apresentamos, não precisa ficar amarrando nossas ações.

Espero ter contribuído para estimular nossas ideias, invocar nossos desejos e mexer nossos músculos!

 

Marccelo Pereyra

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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